Dois paus em cruz espetados no chão, as roupas tão velhas e sujas de terra que dir-se-iam roubadas da jazida de algum defunto, a caraça medonha com o chapéu roto e desabado em cima, tudo isto cheio a miolo de enxergão, e eis a divindade protectora com que o campónio espanta das árvores fruteiras, da seara e da vinha, a praga odiada do pássaro ratoneiro - o pardal atrevido e velhaco, o melro brejeiro que faz o ninho entre os silvados, o marantéu guloso, e toda a outra casta de aves, que sem respeito nem cerimónia se assenta à mesa do lavrador e devora mais que os filhos. Cada grão de trigo tem para o homem que trabalha a terra, o valor de uma bagada de suor ou de uma lágrima, cada fruto é o regalo dos seus olhos e a vinha o sangue quente do seu corpo de mártir. E quer a natureza que o primeiro milho seja dos pardais. Malditos, os ladrões do seu trabalho!
No meio dos campos, levantam-se estes monstros com feição de gente, grotescos e horrendos, apreensivamente ameaçadores na sua imobilidade de ídolos, de que só um ou outro pássaro mais matreiro ousa rir e se atreve a desfeitear, com escárnio e heresias, tão alto poder divino. Mas isso é bicho afeito à astúcia e ronha dos humanos, que os outros não se afoitam. Alguns destes espantalhos são a viva imagem da fantasia, ao mesmo tempo desesperada e risonha, do homem seu criador. São a caricatura do medo, no grotesco das atitudes, na brutalidade e rudeza dos traços, em meio dos albofres, das searas douradas, da vinha dadivosa e dos ricos e perfumados pomares. A inocência das aves, e nisso é que está por ventura toda a graça, não é no fundo maior que a candura dos homens, que, na sua pequenez e infelicidade, também sentem temor dos mesmos diabos infernais e grotescos espantalhos dos humanos apetites, símbolo de maldade e castigo, que pouco diferem dos demónios que assustam a desprevenida ave do céu.
Manuel Mendes em
'Pedro - Romance de um Vagabundo'.
Estou a reler este livro - comprei-o quando tinha 13 anos numa banca de rua - e escolhi este pequeno trecho, não apenas porque gostei dele, mas porque me parece que todos temos um espantalho dentro de nós. Um monstro criado à nossa imagem e semelhança, numa tentativa de assustar o que mais tememos - a nossa pequenez e infelicidade.