Cansa Sentir


Cansa sentir quando se pensa
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar

Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei-de ser
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer

Tudo isto me parece tudo
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim

Tudo isto me parece tudo
Mas noite, frio, negror sem fim
Mundo mudo, silêncio mudo
Ah, nada é isto, nada é assim!

(Fernando Pessoa)

O Espantalho


Dois paus em cruz espetados no chão, as roupas tão velhas e sujas de terra que dir-se-iam roubadas da jazida de algum defunto, a caraça medonha com o chapéu roto e desabado em cima, tudo isto cheio a miolo de enxergão, e eis a divindade protectora com que o campónio espanta das árvores fruteiras, da seara e da vinha, a praga odiada do pássaro ratoneiro - o pardal atrevido e velhaco, o melro brejeiro que faz o ninho entre os silvados, o marantéu guloso, e toda a outra casta de aves, que sem respeito nem cerimónia se assenta à mesa do lavrador e devora mais que os filhos. Cada grão de trigo tem para o homem que trabalha a terra, o valor de uma bagada de suor ou de uma lágrima, cada fruto é o regalo dos seus olhos e a vinha o sangue quente do seu corpo de mártir. E quer a natureza que o primeiro milho seja dos pardais. Malditos, os ladrões do seu trabalho!

No meio dos campos, levantam-se estes monstros com feição de gente, grotescos e horrendos, apreensivamente ameaçadores na sua imobilidade de ídolos, de que só um ou outro pássaro mais matreiro ousa rir e se atreve a desfeitear, com escárnio e heresias, tão alto poder divino. Mas isso é bicho afeito à astúcia e ronha dos humanos, que os outros não se afoitam. Alguns destes espantalhos são a viva imagem da fantasia, ao mesmo tempo desesperada e risonha, do homem seu criador. São a caricatura do medo, no grotesco das atitudes, na brutalidade e rudeza dos traços, em meio dos albofres, das searas douradas, da vinha dadivosa e dos ricos e perfumados pomares. A inocência das aves, e nisso é que está por ventura toda a graça, não é no fundo maior que a candura dos homens, que, na sua pequenez e infelicidade, também sentem temor dos mesmos diabos infernais e grotescos espantalhos dos humanos apetites, símbolo de maldade e castigo, que pouco diferem dos demónios que assustam a desprevenida ave do céu.

Manuel Mendes em 'Pedro - Romance de um Vagabundo'.

Estou a reler este livro - comprei-o quando tinha 13 anos numa banca de rua - e escolhi este pequeno trecho, não apenas porque gostei dele, mas porque me parece que todos temos um espantalho dentro de nós. Um monstro criado à nossa imagem e semelhança, numa tentativa de assustar o que mais tememos - a nossa pequenez e infelicidade.

Se...


Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem

Sophia de Mello Breyner Andresen

O Percurso de Volta


Sempre fui ensinada a não desejar mais do que posso ter - talvez porque quem me ensinou, não tinha muito para me dar. Não sei. Só sei que nunca ambicionei o impossível ou a felicidade suprema, reconhecendo sempre as pequenas benesses e dádivas da vida, com a plena consciência de que nada é eterno. Porém, tudo muda quando somos confrontados com a perda física. Com a ausência da presença. Nasci, cresci e vivi, com as pessoas que me são mais queridas junto de mim, e mesmo aquelas que o destino por vezes teimava em levar para longe, também essas permaneciam sempre e igualmente presentes. Quando se perde uma parte tão importante de nós, como eu perdi recentemente, o mundo deixa de fazer sentido e as memórias que ficam - por muito boas que sejam - não conseguem preencher o vazio deixado por essa perda. Por vezes são como pesadelos, tal é a dor que sentimos quando se recordam. Mas essa perda traz-nos outra consciência - a de que existe a possibilidade de a dor ser ainda maior. A dor de voltarmos a perder alguém querido.

Embora nunca tenha sido pessoa de sofrer por antecipação, durante algum tempo senti essa (estranha e inquietante) necessidade. De sofrer e chorar por quem ainda não perdi, como se com isso me quisesse preparar para a dor que ainda não senti. Remeti-me ao silêncio e à introspecção. Uns dias vazia, outros preenchida. Uns dias inspirada, outros apenas apática. Acabei por me perder num caminho que não conhecia, assim como nos motivos que me levaram a escolhê-lo. Um caminho tão espinhoso, que me obrigou a parar e a reflectir sobre a continuação do seu percurso. A solução era continuar e perder-me de vez ou fazer o percurso inverso e reencontrar-me algures no caminho que ficou para trás. Escolhi  fazer o percurso de volta. De volta ao privilégio da companhia e da presença das pessoas que me rodeiam. De volta ao aceitar de novo que tudo pode mudar e à plena consciência de que nada é eterno. Um percurso de volta a mim.

A verdade está em nós - alguém disse - está no que nos rodeia. Nas pessoas, nos gestos, nas palavras. Ou simplesmente a verdade é tão somente a ilusão de que a verdade existe. Não sei. Pedi-vos tempo, espaço, compreensão. Deram-me carinho, apreço e nunca me deixaram só. Deram-me palavras de alento, de incentivo e de força. Palavras que bebi em silêncio, uma por uma. Palavras que me reconfortaram - algumas fizeram-me sorrir, outras fizeram-me chorar sorrindo. Em cada letra um reflexo, em cada reflexo um pouco de mim. Um pouco daquilo que sou. Daquilo que sei que sou.

E eu sou aquela pessoa que em delicada postura desce a rua, que ouve a música de fundo e sente a brisa suave, que é cúmplice da ave, na vontade madura de abraçar o mundo. Aquela para quem o copo está sempre meio cheio e nunca meio vazio. Aquela que acha que tudo tem um lado positivo, mesmo quando não parece.  Aquela que se reserva sempre o direito de sofrer as desilusões, dando-lhes apenas a importância que elas merecem. Assim sou eu. Assim quero continuar a ser. Obrigada a todos por não me deixarem esquecer disso e por me ajudarem a percorrer o caminho de volta. A verdade pode estar em todo o lado e em lado nenhum em simultâneo, mas há uma verdade que é incontestável - a minha verdade sou eu que a faço. Muito obrigada!