Simples assim...



"Como uma criança antes de a ensinarem a ser grande, 
Fui verdadeiro e leal ao que vi e ouvi."

Alberto Caeiro, in "Fragmentos" 

Voar com as Aves

Este poema foi-me apresentado pelo meu filho que completa hoje 14 anos. Li-o de olhar humedecido mas com um sorriso na alma. Ver um filho crescer e lentamente ganhar as suas próprias asas, acorda-nos para o outro lado do maravilhoso mundo que é ser mãe. O lado em que vê-los voar é tão belo quanto vê-los crescer, porque sim, o voo é inevitável.


POEMA À MÃE

No mais fundo de ti, eu sei que traí, mãe.
Tudo porque já não sou o menino adormecido no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram, que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração rosas tão brancas como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa no meio de um laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme, e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura, dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade in «Os Amantes Sem Dinheiro» (1950)