Voar com as Aves

Este poema foi-me apresentado pelo meu filho que completa hoje 14 anos. Li-o de olhar humedecido mas com um sorriso na alma. Ver um filho crescer e lentamente ganhar as suas próprias asas, acorda-nos para o outro lado do maravilhoso mundo que é ser mãe. O lado em que vê-los voar é tão belo quanto vê-los crescer, porque sim, o voo é inevitável.


POEMA À MÃE

No mais fundo de ti, eu sei que traí, mãe.
Tudo porque já não sou o menino adormecido no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram, que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração rosas tão brancas como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa no meio de um laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme, e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura, dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade in «Os Amantes Sem Dinheiro» (1950)

7 comentários:

By Me disse...

Um belíssimo poema, a realidade que muitas mães ignoram ou preferem não ver.... os filhos crescem e ficam diferentes em todos os sentidos,algumas mães sonham em ter os filhos sempre ao lado, de mãos dadas com elas e quando deveriam ser elas a procurar "motivá-los" para a convivência com os outros, algo de muito estranho e doente se passa. Um filho não pode substituir um pai. Nem uma mãe sentar-se ao " colo" do filho....Este é um tema com pano para mangas.... a mãe sente-se traída porque na adolescência tornam-se mais agressivos, rebeldes, é preciso aprender a lidar com essa fase....convém lembrar que neste momento eles afastam-se dos pais para adquirirem autonomia .... "independência". Só para terminar, se este processo for bem "trabalhado", eles "regressam" aí aos vinte , vinte e tal....

Este poema ilustra muito bem essa relação logo no início
"No mais fundo de ti, eu sei que traí, mãe." e está lá tudo dito ao longo do poema, de forma poética e romântica mas verídica!
Uma mãe não pode querer ser tudo na vida de um filho, ela é uma parte muito importante, precisa compreender que tem de dividi-lo com outras esferas.

Beijinho

Deixá-los voar sem os perder de vista.

Daniel C.da Silva disse...

Até a mim se me apertou o peito...
Espero que o filho menino de 14 anos guarde esse sentimento nobre e bonito da mesma maneira que continue a ser o filho que sempre foi...

:)

Helga Piçarra disse...

Pedrasnuas,

Ver um filho crescer é como ver ameaçado o escudo protector de mãe. Vai-se quebrando lentamente, e a beleza dessa quebra é precisamente saber lidar com os pedaçinhos que vão caindo aos poucos. No início é aterrador, confesso, mas quanto mais se contrariar esse processo mais doloroso se torna para ambas as partes. Da mesma forma que os meus pais me deixaram voar, com carinho e disciplina, cabe-me a mim agora deixar voar os meus, é inivitável. Assusta, mas é maravilhoso... e ainda é só o começo...

Bjs :)

Helga Piçarra disse...

Daniel,

Sim, dá um aperto no peito, enorme!
Espero que sim, que todos eles recordem os meninos que são com o mesmo carinho que os fará crescer.

:)

Fê blue bird disse...

Amiga, o amor de mãe está sempre divido entre a vontade de ter os filhos junto de nós e o desejo que voem e sejam felizes e realizados.

O teu filho escolheu um poema que revela a sua grande sensibilidade.

beijinho aos dois

Helga Piçarra disse...

Sim Fê, é isso mesmo... é essa maravilhosa e assustadora dualidade do mesmo sentimento que nos invade.

bjs

Petit Leaves disse...

Lindo... tão lindo <3

[um pouco de inveja... mas da boa :)]